Negócios
Bom de briga, IDV vai para cima das bets
O setor varejista mal saiu de uma guerra para exigir a cobrança de impostos de peças de vestuários importadas da China, a chamada “taxação das blusinhas chinesas”, e já está às voltas contra outra ameaça às vendas do varejo: a concorrência com as apostas oferecidas pelas 300 plataformas online que atuam no País, as chamadas bets.
Os dados são assustadores. Pesquisa da Hibou com 2.839 pessoas, em agosto deste ano, mostra que a despesa mensal do brasileiro com apostas online está entre R$ 100 e R$ 500. O hábito está particularmente arraigado nas classes C, D e E – onde 79% de seus integrantes apostam regularmente.
De acordo com o Banco Central, cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram R$ 3 bilhões às bets apenas em agosto. Esse montante corresponde a 21% do total de R$ 14,1 bilhões desembolsado pelo governo federal no programa de transferência de renda.
Do lado das plataformas online, só em 2023 elas arrecadaram entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões em apostas. Desse total, cerca de R$ 40 bilhões deixaram de ser gastos com bens e serviços. Para 2024, segundo estudo da Strategy&, consultoria estratégica da PwC, a projeção é que as bets arrecadem até R$ 130 bilhões – o dobro das vendas registradas em 2023 pela Magazine Luiza, uma das gigantes do varejo.
Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), que completa 20 anos, conta que a entidade que congrega empresas varejistas de diversos setores começou a se preocupar com o impacto causado pelas bets ao notar uma queda de consumo em alimentação e vestuário, seguido de relatos de associados sobre as dificuldades financeiras de funcionários com apostas.
“Começamos a analisar os efeitos, não só do desvio de finalidade do dinheiro usado nas bets, mas também a questão de saúde pública, pois virou um vício”, diz Gonçalves, nesta entrevista ao NeoFeed.
Depois de consultar a Febraban, o IDV descobriu uma inadimplência de 2 em cada 3 faturas de cartões de crédito de clientes que apostam online. Diante desse quadro, Gonçalves conta que aproveitou a presença do vice-presidente Geraldo Alckmin no evento de 20 anos de fundação do IDV, no final de agosto, para apresentar o problema.
Desde então, foram mais duas reuniões com o vice-presidente, a última na segunda-feira, 23 de setembro. “Pedimos uma regulamentação mais firme, pois as propagandas das bets estão 24 horas na TV e nas mídias sociais, uma taxação maior, hoje em 12%, e que as bets banquem o tratamento para livrar o vício de apostadores, pois essa conta vai cair no SUS”, diz ele.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Gonçalves ao NeoFeed:
O IDV tem advertido riscos associados ao crescimento das plataformas eletrônicas de apostas, conhecidas como bets. O que preocupa mais o segmento?
Começamos a acompanhar esse efeito das bets internamente, com associados relatando dificuldades financeiras de funcionários com apostas e outros efeitos. Surgiu uma faísca e passamos a acompanhar várias pesquisas, indicando que o problema já estava crescendo de forma exponencial.
Os gastos com apostas afetaram o varejo?
Sim, detectamos por pesquisas que um volume de recursos significativos, que deveriam estar indo para o consumo, como alimentação e vestuário, estavam indo para outro negócio. Passamos a consultar outros setores e soou um alerta que já não era amarelo, e sim vermelho.
O problema atinge a economia como um todo?
Sim, a Febraban também estava preocupada, pois descobriu que, de cada três faturas de cartão de crédito de clientes que apostam em bets, duas não estavam sendo quitadas. Com base nos dados do Banco Central, o Itaú divulgou que os gastos com apostas haviam chegado a R$ 68 bilhões em 2023 e devem atingir R$ 120 bilhões este ano. Começamos a analisar os efeitos, não só do desvio de finalidade do dinheiro usado nas bets, mas também a questão de saúde pública.
“De cada três faturas de cartão de crédito de quem aposta em bets, duas não são quitadas”
Como o IDV passou para a ação para lidar com o problema?
Pegamos todas as pesquisas que tínhamos reunido e aproveitamos um evento de 20 anos de criação do IDV, voltado para debater vários assuntos de interesse do varejo, em Campos de Jordão, no fim de agosto, para discutir o problema. O vice-presidente Geraldo Alckmin estava presente e quando abordamos a questão das bets mostramos os dados que havíamos levantado. Um deles indicava que 79% da população das classes C, D e E estavam apostando fortemente em bets, deixando inclusive de comprar comida ou fazer outros gastos essenciais.
O vice-presidente ficou surpreso?
Ele ficou preocupado e sugerimos coletar material de diversas fontes, não só de pesquisas, como de outras associações, e mostrar a ele numa reunião em Brasília. Nesse período, apareceram vários dados novos, um deles envolvendo educação. Foi feita uma pesquisa com 10 mil estudantes mostrando que 12% deles não estão refazendo matrícula, usando o dinheiro para apostar.
O que o IDV sugeriu para atacar o problema?
Levamos ao vice-presidente Alckmin, na segunda-feira, 23 de setembro, um vasto material com sugestões de pontos a melhorar. Um deles é a legislação, que é muito fraca. Um exemplo é a publicidade. Na TV, são 24 horas por dia de campanhas publicitárias de apostas, estreladas por influenciadores e artistas, incluindo patrocínio dos clubes de futebol. Tudo o que atrai o jovem está tomado pelas bets. Elas estão criando uma legião de pessoas que está gastando todo o o salário para apostar. Temos exemplos de casais que se separaram, de pessoas que perderam tudo e estão devendo para agiotas. Também chamamos a atenção para outros problemas.
“Tudo o que atrai o jovem está tomado pelas bets. Elas estão criando uma legião de pessoas que está gastando todo o salário para apostar”
Quais?
Falamos da penetração nos meios digitais. Todo mundo passa o dia inteiro recebendo no celular sugestões de bets, inclusive oferecendo uma quantia para apostar. Isso precisa ser contido, tanto nos celulares quanto nas mídias digitais – isso foi levantado pelo próprio Alckmin. A ludopatia, que é o vício em apostas, chegou nas bets e virou um problema de saúde pública. Essa doença vai crescer e quem vai ter de lidar com ela é o SUS. Alertamos o vice-presidente que isso deveria ter uma responsabilização direta das bets pelo tratamento dessas pessoas.
Mas uma parte de arrecadação das bets não é direcionada para a saúde?
Sim, mas precisamos obrigar as casas de apostas a bancar diretamente esse tratamento, como ocorre na Inglaterra. Também abordamos com o vice-presidente a questão da tributação. As bets pagam 12% de imposto. Qualquer produto que compramos de uma empresa vem com carga tributária de 40% a 50%. Ou seja, precisamos trocar algo que é tributado em 12% por algo que deveria ser tributado quatro vezes mais, pois é consumo. O governo também está perdendo esse dinheiro. Na reforma tributária, as bets deveriam ser incluídas na alíquota diferenciada, com tributação semelhante a cigarro e bebida, de alíquota cheia.
Como o governo federal recebeu essas propostas?
A lei das bets foi aprovada no governo Michel Temer, em 2018, mas só agora o atual governo buscou sua regulamentação. Reconhecemos isso, mas o fato é que a regulamentação é muito fraca, pouco contundente para um problema tão sério. Soubemos que a proibição de apostar pagando com cartão de crédito, que só entraria em vigor em 2025, vai se antecipado para esse ano. Mas é preciso atacar outros temas, como a publicidade. É preciso acionar o Procom para checar se há publicidade enganosa, e limitar o tempo de propaganda na TV. Isso tem de ser feito já, não dá para esperar janeiro do ano que vem. O estrago pode se irreversível.
“A regulamentação das bets é muito fraca, pouco contundente para um problema tão sério”
O vice-presidente acenou com alguma ação?
Na verdade, o governo federal se mostrou interessado com algo que já vinha tratando há algum tempo, como a tributação, pelo Ministério da Fazenda. Mas há temas correlatos que dizem respeito ao Ministério da Justiça, como o Procon, ou Ministério da Saúde. Ou seja, precisa ser ampliada a abordagem ao tema bets.
Como envolver o Congresso Nacional nessa discussão?
Há um projeto de lei em tramitação no Senado que trata da liberação de cassinos. Mas é preciso tomar cuidado: no texto, sem perceber e de forma subliminar, foi incluída a liberação de bingos e de máquinas caça-níqueis. Cassino é uma coisa, cria empregos, é formal, etc. Mas essas máquinas caça-níqueis são que nem as bets, se o governo não ficar atento vai ter em toda esquina. Sabemos que o jogo está aí, é uma realidade, mas precisa ser tratado com mais restrições para que não prejudique a saúde das pessoas nem a economia do País.
O Brasil está com uma economia aquecida, com o mercado de trabalho a pleno vapor. A despeito do impacto das bets, o varejo está notando esse crescimento do PIB no consumo?
Não está correspondendo como um todo. Alguns setores campeões, como farmácia, pets e artigos de perfumaria, estão bem. Mas outros setores, como linha branca e materiais de construção, estão sofrendo. Não estão tendo aquele crescimento esperado, que deveria ser muito grande, porque o governo injetou dinheiro na economia e a renda está crescendo mais. Os R$ 100 bilhões, que é o que se espera para serem colocados nas bets este ano, atrapalham e fazem falta ao varejo.
A taxa Selic mais alta também atrapalha esse cenário?
Sim, mas é preciso olhar o todo. Os juros atrapalham, por exemplo, no capital de giro. Quando o lojista faz uma compra para o estoque, ele tem de financiar com juros em alta, ou seja, está descontando aquele recebível e pagando mais caro. Isso obriga o varejo a ser mais restritivo na oferta de parcelas. Sem falar na inadimplência, que é maior com juros altos.
“A taxação das blusinhas chinesas aprovada ainda está longe da equidade tributária”
Antes das bets, o varejo viveu outra guerra, no caso, a taxação das blusinhas chinesas. A taxação definida (imposto de importação com alíquota de 20%, além da alíquota de 17% de ICMS) foi considerada suficiente para o setor?
Não foi considerado suficiente, embora seja preciso entender e agradecer os esforços do ministro da Fazenda, da Câmara e do Senado. Porém, todos sabemos que a aprovação final, com as alíquotas definidas, foi apenas o primeiro passo. Precisamos chegar na equidade tributária, que estaria num nível de 80% – e temos hoje um total de 44,6% de tributação. Não chegamos nem o que era antes, de cerca de 60%. Ou seja, passou um pouco da metade do que é necessário.
O quer seria preciso para atingir pelo menos os 60%?
Esse próximo degrau significa dar um pequeno aumento no ICMS, um pequeno aumento da alíquota de importação, porque eles são compostos, para chegar a 60% ainda este ano. Os estados sabem que 17% de ICMS é pouco e precisam arrecadar mais. Estamos conversando com as secretarias de Fazenda estaduais, mas estamos num período de eleição.
O IDV chegou a calcular o impacto para o setor antes da taxação das blusinhas chinesas?
As empresas, principalmente de vestuário, tiveram redução forte nas vendas e no resultado, as ações caíram, lembrando que essa queda nas ações teve impacto também no valor das empresas. Então foi muito ruim para o setor, do pós-pandemia até a taxação atual.
Qual foi a avaliação do IBV sobre o projeto de regulamentação de reforma tributária aprovado?
Olhando pelo lado do IDV, um instituto que quer ajudar na formalização da economia, pode ser positivo, desde que tenha uma boa implantação. Estamos com 26,5% de alíquota do IVA. Se a regulamentação não for feita corretamente, pode tornar o País com o de maior sonegação do mundo. O risco é uma “rachadinha” – dos 26,5%, fica 13,25% para mim e 13,25% para você, fazemos esse desconto e não pagamos o imposto. Por isso precisamos ficar atentos à implementação, para que todos paguem o que é devido.
Negócios
Como Elon Musk fez do X um “megafone” pessoal
Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) espera o pagamento dos R$ 28,6 milhões em multas para liberar o funcionamento do X no Brasil, chega ao país o livro Limite de caracteres: Como Elon Musk destruiu o Twitter. Escrita pelos repórteres americanos Kate Conger e Ryan Mac, do jornal The New York Times, a obra traz uma investigação minuciosa sobre o destino que o bilionário deu a uma das redes sociais mais populares de todos os tempos.
Em quase 500 páginas, eles revelam, pela primeira vez, os bastidores da aquisição da empresa fundada, em 2006, por Jack Dorsey, Evan Williams, Biz Stone e Noah Glasseles — e suas consequências políticas, sociais e financeiras. A compra do Twitter por Elon Musk foi concluída em outubro de 2022, por US$ 44 bilhões, e seguiu um processo polêmico, cujos detalhes mostram uma transação incomum no mundo dos negócios.
“A aquisição veloz não teve precedentes culturais ou sociais. Esse tipo de transação não costumava ser realizado por uma única pessoa: apenas corporações ou gestoras de capital privado compravam empresas daquele tamanho”, avaliam Kate e Ruan. “Mas Musk tinha atingido um pico de fortuna do qual poucos titãs conseguiram se aproximar, e as regras dos negócios tradicionais não se aplicavam mais a ele”.
O empresário sempre foi um dos usuários mais ativos da plataforma, tuitando sem papas na língua sobre todos os assuntos. Mas Musk estava insatisfeito com os rumos tomados pela rede, contaminada por um suposto espírito progressista de censura que, segundo ele, ameaçava a democracia. Imbuído da defesa da liberdade de expressão “absoluta”, em janeiro de 2022, começou a comprar ações da empresa, para nove meses depois, assumir seu comando.
O retrato do dono da Tesla e da SpaceX traçado pela dupla de repórteres não é nada lisonjeiro — um homem controverso, inconstante e sem limites para satisfazer seus desejos e suas convicções políticas. Não à toa, o título do livro em inglês faz um jogo com a palavra “character”, que significa tanto “caractere” quanto “caráter”.
Além de dezenas de entrevistas, Kate e Ryan recorreram a documentos inéditos, que mostram o caos que se instalou quando o empresário assumiu a empresa com sanha revolucionária. Ninguém sabia o que ele tinha em mente. Em pouco tempo, não só demitiu metade dos funcionários, cerca de 3,7 mil pessoas, como afastou anunciantes, comprometendo a base do negócio do Twitter.
Hoje, o X está mergulhado em dívidas. Em fevereiro passado, a Fidelity avaliou a plataforma em US$ 11,8 bilhões — uma desvalorização de 73% desde o momento em que Musk assumiu a companhia.
Em meio a boatos de que manipularia informações, o primeiro gesto de Musk como líder da rede social foi aderir a uma teoria da conspiração grosseira. Ele espalhou na empresa uma reportagem falsa sobre o marido de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos. O texto sugeria que ele havia sido atacada dentro de casa por um homem perturbado, com quem tinha um relacionamento amoroso.
“Aquele era o tipo de mentira tão absurda que só seria levada a sério por alguém de cabeça fraca”, escrevem os jornalistas, “radicalizado pelas muitas horas que passava todos os dias na internet, isolado na própria bolha. Para observadores das mídias sociais, Musk parecia ser um desses conspiracionistas facilmente ludibriados”.
Segundo Kate e Ryan, enquanto a maioria dos bilionários da indústria da tecnologia costuma gastar dinheiro com iates, clubes esportivos e ilhas longínquas, entre outros caprichos, Musk cobiçou um megafone, pelo qual se faria ouvir por mais de 80 milhões de pessoas.
Para os repórteres, o amor que o bilionário tinha pelo Twitter era fácil de entender: “Todos os dias, durante horas, ele ficava navegando pela rede: lia postagens, ria de memes e disparava pensamentos em fluxo de consciência, como qualquer outro usuário. Ele se extasiava com o engajamento que recebia, e, como aconteceu com muitos outros tuiteiros hardcore, a plataforma se tornara um vício”.
A diferença entre ele e outros usuários do Twitter obcecados pela injeção constante de dopamina, dizem os autores, no entanto, era que Musk tinha os meios para controlar o seu vício e o desejo de recriá-lo à sua imagem e semelhança. “Seria seu brinquedo, mas que poderia custar bem caro e com consequências desastrosas para vários países, inclusive os Estados Unidos”, lê-se em Limite de Caracteres.
“Amigos e comparsas”
A narrativa do livro vai até maio deste ano e faz revelações sobre o apoio de Musk a Donald Trump: “Trump precisava de um investidor para turbinar a campanha presidencial, e Musk acreditava que o candidato republicano era a melhor solução para evitar mais quatro anos de Joe Biden no poder”.
O empresário, dizem os jornalistas, picotara o Twitter de tal forma até transformá-lo no X, “que nada mais era do que um lugar onde todos os seus amigos e comparsas podiam ter contas verificadas, onde seus gurus favoritos tinham a chance de viralizar e onde as postagens que ele próprio fazia eram as mais curtidas, as mais visualizadas e as mais populares na plataforma”.
Musk também abriu a porteira para receber perfis que haviam sido banidos, como os de Alex Jones e de vários outros supremacistas brancos. “Vez ou outra, ele interagiu com essas pessoas desprezíveis, fazendo com que elas ganhassem não só ‘liberdade de expressão’ como também um alcance ainda maior”, dizem os autores.
Enquanto isso, “a plataforma continuava a suspender contas de jornalistas e a processar qualquer um que tentasse expor a podridão de discurso de ódio e informações falsas na qual a rede social se transformara. O bilionário tinha alcançado um patamar de sucesso nunca visto de liderar a revolução dos automóveis elétricos e os esforços para fazer a raça humana superar as fronteiras do planeta Terra”.
E é claro que ninguém além dele teria a motivação e os recursos financeiros necessários para comprar uma plataforma, com alcance no mundo inteiro, só porque queria “proteger” a liberdade de expressão, apontam Kate e Ryan.
Essa, no entanto, era uma missão que Musk criara para si próprio: “Foi assim que cometeu a asneira de comprar o Twitter por um valor altíssimo, só para poder controlar uma plataforma de internet disponível no mundo todo e comensurar o valor do próprio ego em curtidas e respostas”.
Como observam os repórteres: “Um homem que não suportava receber críticas havia comprado o maior público do mundo, e queria que todo mundo batesse palmas para ele. Não era um desejo sem precedentes, afinal, muitas pessoas que usam as redes sociais estão lá porque também buscam algum tipo de validação do universo. E por alguns breves instantes fugidios, teve nas mãos aquilo que tanto queria. Ele era o dono do Twitter até que o Twitter deixou de existir”.
Negócios
A família que criou a Kopenhagen quer chacoalhar (novamente) o mercado do chocolate
Chegar a uma loja de chocolates e solicitar um produto sem açúcar parece uma atitude contraintuitiva, mas não é. Com um mercado cada vez mais plural e abrangente, diversas marcas estão se especializando em produtos saudáveis, com o intuito de democratizar o consumo.
Essas iniciativas, que partem de grandes nomes do mercado e vão até pequenas marcas iniciantes, fazem os números do setor crescerem. Avaliado em US$ 19,1 bilhões, em 2023, o mercado global de alimentos sem açúcar deve movimentar US$ 23,3 bilhões, nos próximos quatro anos, de acordo com levantamento realizado pela consultoria Mordor Intelligence.
Esse é o boom que a GoldKo, marca de chocolates sem açúcar criada pela família Kopenhagen, deve aproveitar para expandir a sua operação no Brasil nos próximos anos.
Fundada por Paulo Kopenhagen Goldfinger — o chocolateiro que vendeu a Kopenhagen em 1996 para o grupo CRM — e seus filhos, Gregory e Chantal, em 2017, a empresa não nasceu focada no movimento saudável.
Na verdade, o negócio foi desenhado para ser apenas uma loja de chocolate tradicional, da forma como a família havia operado por cerca de 70 anos a Kopenhagen, que hoje pertence à Nestlé.
“Em 2018, com um ano de empresa, meu pai trouxe um chocolate novo para experimentarmos. Ao comer, foi unânime a opinião de que ele era melhor do que o que a gente vendia e, para a nossa surpresa, ele não tinha açúcar”, conta Gregory, CEO da companhia, ao NeoFeed.
“Foi naquele momento que percebemos que era preciso mudar toda a empresa”, complementa.
Essa mudança de rumo levou algum tempo, mas em 2020 a primeira loja GoldKo saiu do forno, desta vez com produtos sem nenhuma adição de açúcar.
Com um catálogo que inclui doces como marshmallows, barras de chocolate e de proteína, bombons e sorvetes, a empresa comercializa em torno de 1 milhão de produtos ao mês.
Essas vendas acontecem em 10 unidades físicas, sendo uma própria e nove franqueadas, além do e-commerce e os cerca de 15 mil pontos varejistas, que contam com os produtos da GoldKo em suas prateleiras.
Assim, para o fim de 2024, a empresa planeja ter 15 lojas assinadas e, para 2025, devem ser abertas pelo menos mais 20 unidades. Com uma expectativa ambiciosa para os próximos anos, o CEO afirma que deve encerrar 2034 com 500 pontos abertos, distribuídos entre lojas de rua e shoppings.
Para chegar a esse número, a marca investiu mais de R$ 15 milhões em sua fábrica, localizada em Minas Gerais, e R$ 5 milhões no processo de estruturação de franquias.
Marshmallow pioneiro
Na visão de Gregory, com os investimentos, a vertical de franquias deve registrar o melhor desempenho no longo prazo, frente aos outros pontos de venda da marca.
Assim, a empresa espera continuar crescendo 55% ano a ano, como tem feito nos últimos quatro anos. E, para Gregory, o que motiva esse avanço e diferencia a companhia das concorrentes são os produtos.
“Para nós, existe uma linha de corte bastante delimitada. Se o nosso produto não for melhor do que o equivalente que tem no mercado com açúcar, nós simplesmente não vamos lançá-lo”, afirma o CEO. “E, para chegar nesse sabor e nessa qualidade, é preciso muito de teste, tentativa e erro e, principalmente, inovação, que é um dos nossos pilares na empresa”.
Com essas premissas, a GoldKo desenvolveu o primeiro marshmallow sem açúcar do mundo e, logo em seguida, avançou com o mesmo produto, só que na versão vegana, algo também inédito. Assim, a “Nhá Benta”, criada pela família na época da Kopenhagen, agora se chama “Musa”, na versão GoldKo sem açúcar e sem produtos de origem animal.
“Para chegar à receita final, foram aproximadamente três anos de pesquisa”, diz Gregory. O esforço deu resultado: hoje a Musa é o carro-chefe da companhia e outros produtos que levam o marshmallow aparecem logo em seguida na esteira de vendas.
Além do trabalho antes do produto começar a ser efetivamente desenvolvido, também existe um custo alto para colocá-lo no mercado. O CEO afirma que, apenas no componente que substitui o açúcar, os custos chegam a ser 7 vezes superiores à matéria prima original.
“Se parar para pensar que o produto é composto por pelo menos 50% desse componente, já dá para ter uma ideia de quanto ele é mais caro do que o item regular com açúcar”, afirma Gregory. “Com isso, nós precisamos precificar os produtos de forma que faça sentido com os seus custos, o que deixa eles um pouco mais elevados”.
Segundo o CEO, por causa do preço menos atrativo à primeira vista, é preciso incentivar a experimentação dos produtos nas lojas. Mas, ele afirma que, após comer pela primeira vez, a conversão do cliente costuma ser bastante alta.
Ao pensar em concorrência, Gregory afirma que existem muitos players que batem de frente com a GoldKo — e eles vêm de todos os lados. “Nós sabemos que não vamos conseguir ser relevantes em todas as categorias nas quais atuamos, mas escolhemos focar no que somos efetivamente reconhecidos pelos consumidores para bater de frente com o mercado”, diz. “A nossa vantagem competitiva realmente é o sabor.”
Negócios
Almodóvar encara a morte de frente. Em inglês
VENEZA —Aos 75 anos, mais de 50 deles dedicados às telas, Pedro Almodóvar busca a reinvenção. Aquele que foi projetado como o “enfant terrible’’ do cinema espanhol, celebrando as liberdades de expressão e sexual e depois passou pela fase de emoções mais contidas, lidando com fantasmas do passado, agora muda de idioma.
“É como ingressar em um novo gênero. Para mim, é como ficção científica”, afirmou o cineasta, em referência a O Quarto ao Lado, seu primeiro longa-metragem falado em inglês. Uma das atrações da recém-inaugurada 26ª edição do Festival do Rio, em cartaz até o dia 13, o drama chega na sequência ao circuito comercial no Brasil, estreando no dia 24.
Vencedor do Leão de Ouro no último Festival de Cinema de Veneza e um dos prováveis candidatos ao Oscar de melhor filme em 2025, O Quarto ao Lado é inspirado na obra What Are You Going Through, da americana Sigrid Nunez, publicada em 2020. “É um livro quase inadaptável’’, brincou Almodóvar, em encontro com jornalistas, do qual o NeoFeed participou.
Mas o cineasta, nascido em Calzada de Calatrava, na região da La Mancha, no centro da Espanha, encarou a empreitada por sentir afinidade com o material, independentemente do idioma. Vale lembrar que Almodóvar fez dois experimentos em inglês, filmando os curtas-metragens The Human Voice (2021) e Strange Way of Life (2023), antes de se aventurar em uma obra com quase duas horas de duração.
O roteiro de O Quarto ao Lado explora a relação de duas amigas que há tempos não se veem: a escritora Ingrid (interpretada por Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), uma ex-correspondente de guerra do jornal The New York Times. O câncer terminal de Martha a leva a pedir ajuda Ingrid, de quem era muito próxima nos anos loucos da juventude.
Buscando tomar as rédeas da própria existência, Martha quer que Ingrid a ajude morrer, na data que ela escolher. Até lá as amigas deixarão a cidade de Nova York para se instalarem em bela mansão de férias no interior do estado, onde passarão a vida a limpo, em uma espécie de inventário emocional antes da partida.
“Elas são de Nova York, mas pertencem a uma geração que conheço bem, a dos anos 80. Mesmo que eu não faça uma análise da sociedade americana, sei como tratar mulheres desse período porque conheço outras como elas”, contou Almodóvar.
“Pensei que teria mais problemas no set, já que a questão da língua poderia ser um pouco estranha para mim. Mas não”, comentou o cineasta, um especialista em desvendar a alma feminina nas telas. Geralmente com personagens fortes e corajosas, mas nem por isso menos complicadas. “Tilda e Julianne entenderam exatamente o tom mais austero que eu buscava para contar essa história. Queria algo emocional, mas não melodramático”, completou.
Além de conhecer bem as personagens saídas da imaginação da escritora, há outro motivo para o diretor ter topado filmar em inglês só agora. Convites de Hollywood não faltaram nas duas últimas décadas — depois que ele conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro com Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e o de melhor roteiro original com Fale Com Ela (2002).
Um exemplo foi a história de amor de O Segredo de Brokeback Mountain (2005), com caubóis homossexuais. O filme foi oferecido primeiro ao espanhol, que recusou a oferta, abrindo caminho para Ang Lee.
A ideia de encarar a morte de frente desafia cada vez mais Almodóvar, o que explica o seu interesse pela obra de Sigrid Nunez. “Sou imaturo quando se trata da morte, ainda que ela esteja em todo lugar. Sinto que cada dia que passa é um dia a menos que eu tenho. Mas gostaria de sentir que é um dia a mais que eu vivo”, comentou ele.
Em Dor e Glória (2019), Almodóvar já apresentou o seu alter ego (vivido por Antonio Banderas), sofrendo de muitos problemas de saúde. “Estou falando mais de doenças porque sofro com algumas que me limitaram muito. Não a minha atividade cinematográfica, mas os meus movimentos”, contou o cineasta, que é a favor da eutanásia, abordada em O Quarto ao Lado.
Definido por Almodóvar como uma história de “empatia e generosidade”, o filme está cotado nas principais bolsas de apostas de Hollywood para disputar o Oscar principal.
Se confirmada a indicação, esta será a primeira vez que o espanhol vê uma obra sua conquistar uma vaga na categoria.
Embora talvez fosse melhor com uma obra rodada em sua língua, O Quarto ao Lado não deixa de ser uma prova máxima da sua maturidade atrás das câmeras.
Almodóvar está indiscutivelmente mais sério, mais profundo e menos extravagante — mas sem perder as características almodovarianas, como personagens irremediavelmente humanos, a provocação com temas considerados tabus e a habilidade para fazer o absurdo parecer plausível.
Sim, ele é um dos poucos autores com um universo cinematográfico tão forte e identificável a ponto de virar adjetivo.
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