Negócios
Nordstrom fecha acordo de US$ 6,2 bilhões e vai deixar a Bolsa

A Nordstrom, uma das redes de lojas de departamentos mais antiga dos Estados Unidos, decidiu fechar seu capital na Bolsa de Valores e vender 49,9% da sua operação para o grupo mexicano El Puerto de Liverpool, em um negócio avaliado em US$ 6,25 bilhões, incluindo dívidas.
No acordo, os herdeiros da Nordstrom, que detinham cerca de 33% do capital da companhia negociada em Wall Street, agora ficarão com 50,1% da empresa, retomando o seu controle.
O acordo, que está previsto para ser concluído no primeiro semestre de 2025, está sujeito à aprovação dos reguladores e de dois terços dos acionistas da Nordstrom. A empresa propõe que esses acionistas recebam US$ 24,25 por ação em dinheiro, caso concordem com o negócio.
O grupo mexicano, que já havia adquirido 10% da Nordstrom em 2022, é proprietária das lojas de departamento Liverpool e Suburbia e opera franquias de marcas como Gap, Banana Republic, Williams Sonoma e Pottery Barn no México.
“Este anúncio marca um momento importante e estamos entusiasmados com as oportunidades potenciais que ele traz”, informou o CEO Erik Nordstrom em comunicado ao mercado.
Com a negociação, os herdeiros buscam reviver os anos de glória da rede de departamentos, que vêm perdendo clientes há décadas para varejistas de fast-fashion e e-commerces concorrentes, principalmente os internacionais.
Por outro lado, as concorrentes diretas da Nordstrom, incluindo Macy’s e Kohl’s, atraíram investidores ativistas nos últimos anos na tentativa de dar apoio ao negócio e foram pressionadas a vender imóveis e cortar custos.
Essa não foi a primeira tentativa da Nordstrom de vender parte de seu negócio, mas todas as outras propostas não atenderam aos requisitos da família. Em 2017, a empresa recebeu uma proposta da firma de private equity Leonard Green & Partners, que foi considerada muito baixa pela liderança da companhia.
Os altos e baixos foram sentidos nas ações da companhia ao longo dos anos. Em seu auge, há cerca de uma década, a Nordstrom era avaliada em US$ 15 bilhões. No fechamento de sexta-feira, 20 de dezembro, a empresa atingiu um valuation de pouco mais de US$ 4 bilhões.
Os resultados financeiros foram grandes motivadores para essa queda de valor de mercado. Antes da pandemia do Covid-19, em 2019, quando a empresa começou a mostrar dificuldades, as vendas totais da empresa atingiram US$ 15,9 bilhões. Neste ano, a companhia projeta encerrar a um faturamento de US$ 14,9 bilhões.
Uma movimentação semelhante ocorreu em julho deste ano. Após anos de idas e vindas, a Sacks adquiriu as operações da Neiman Marcus, num acordo de US$ 2,65 bilhões que contou com a “benção” da Amazon. A operação resultou na criação de um dos maiores nomes de lojas de departamento de alto padrão, com vendas anuais na casa dos US$ 10 bilhões e mais de 150 unidades.
Negócios
Bill Gates e a invenção de um futuro que já dura meio século

Seis anos havia se passado desde a chegada do homem à Lua, em julho de 1969, quando Bill Gates, aos 19 anos, junto com Paul Allen, começou a redefinir o curso da humanidade.
Era o início da revolução tecnológica e jovens intuitivos, como eles, se lançavam na corrida pela criação de um computador doméstico que se destacasse pela eficiência, durabilidade e praticidade. Não sabiam exatamente como chegariam lá, mas sabiam que faziam parte de algo muito grande — algo que mudaria radicalmente o mundo e o modo como a vida era encarada até então. Em meio essa efervescência transformadora, em 2 de janeiro de 1975, os amigos fundaram a Microsoft.
Quem conta essa história é o próprio Gates em Código-fonte — Como tudo começou, o primeiro volume de sua trilogia autobiográfica, lançado mundialmente na terça-feira, 4 de fevereiro.
Aos 69 anos, o empresário se sai bem no desafio de revelar a vida pessoal e a aventura criativa que o transformou em um dos homens mais ricos do planeta e uma das personalidades mais influentes dos últimos 50 anos.
Com a maturidade que a idade lhe trouxe, uma sinceridade surpreendente e uma escrita fluente e confessional, marcada por momentos de emoção e um modo gentil de tratar até mesmo adversários, Gates vai dos primeiros anos da infância até os passos iniciais que o levariam à ascensão da Microsoft, em um relato de quase 400 páginas.
Acompanhamos suas primeiras paixões, as inseguranças da adolescência de um nerd e as aspirações no mundo da lógica, de matemática e de tecnologia.
Lembra os ensinamentos da avó, que o ajudariam ao longo de toda a vida. Dos pais ambiciosos, porém presentes e motivadores — desde que o segundo dos três filhos não abandonasse os estudos. E da morte repentina de seu melhor amigo, Kent Evans, em um acidente de escalada, aos 17 anos.
O livro está repleto de histórias nunca reveladas, nem mesmo por seus biógrafos. Ele mostra como desenvolveu desde cedo uma paixão pelo raciocínio lógico, até fundar, em 1975, a Micro-Soft (sim, escrevia-se dessa forma), em parceria com Paul Allen, quando estava no segundo ano da Universidade Harvard e não sabia que rumo dar à sua vida.
Até que “Paul, um dos meus amigos de Lakeside [escola privada, em Seattle, onde o empresário estudou], entrou de rompante no meu quarto com a notícia do lançamento de um computador inovador. Eu sabia que poderíamos escrever uma linguagem BASIC para ele, pelo que tínhamos vantagem”.
Código na neve
Imediatamente Gates lembrou “dia miserável no desfiladeiro de Low Divide” e resgatou da memória o código escrito, ao longo da longa caminhada na neve com alguns colegas, anos antes. Ele percorrera a trilha meio a contragosto e, durante o percurso, ocupou a cabeça com números e a criação de um sistema operacional.
“Depois, introduzi-o num computador, lançando a primeira semente daquilo que se tornaria numa das maiores empresas de informática do mundo e o princípio de uma nova indústria”, acrescenta, sem modéstia.
A história para Gates e Allen começou quando nascia o primeiro software da então Micro-Soft, o interpretador Microsoft Altair BASIC para o computador Altair 8800, da MITS. Através de um anúncio na revista Popular Electronics (na época os computadores só eram vendidos dessa forma, por correspondência), os dois tomaram conhecimento do lançamento dessa máquina e ficaram maravilhados com as novas possibilidades que surgiam ali.
Um ano depois, com uma caneta esferográfica azul, Gates destacou o que considerou como o principal parágrafo de uma reportagem da revista Newsweek: “A indústria de computadores domésticos já começa a se parecer com uma versão em miniatura do mercado de mainframes — inclusive por ser dominada por um único concorrente. A IBM dos computadores domésticos é a MITS Inc., fundada há sete anos pelo engenheiro H. Edward Roberts na garagem de sua casa em Albuquerque (Novo México)”.
Conforme o artigo, a MITS vendera 8 mil unidades do Altair 8800 e obtivera um faturamento de US$ 3,5 milhões no ano anterior. A concorrência existia, ressalvava o texto, mas a liderança inicial do Altair fez dele um padrão da indústria.
A matéria ocasionou uma enxurrada de telefonemas para a MITS, de lugares tão distantes quanto a África do Sul. “As pessoas queriam ter alguma ligação com a empolgante empresa mencionada por ela, atuando como distribuidores, abrindo lojas de computador ou trabalhando como consultores para apresentar o Altair a clientes de negócios”, conta Gates.
Ele, então, pensou: mesmo que a MITS seja a IBM do momento, isso não vai durar. Um dos motivos era que se a IBM algum dia decidisse fabricar um computador pessoal, havia uma boa chance de tomar o posto da MITS. “Eu sabia que Ed Roberts [dono da empresa] estava preocupado que grandes empresas de eletrônicos entrassem na briga”, escreve.
O “Presidente”
A Micro-Soft engatinhava. Gates tinha 60% da empresa e Allen, os 40% restantes: “Entre nós nos tratávamos por títulos grandiosos: eu era o ‘Presidente’ e ele, o ‘Vice’”.
“Eu me preocupava com o fato de ainda sermos tão dependentes da MITS. Os royalties das licenças do Basic para o microprocessador Intel 8080 do Altair continuavam sendo nossa principal fonte de receita. As licenças do nosso código-fonte para essa versão do Basic começavam a dar frutos. Nessa época, fechamos com a General Electric, que nos pagou US$ 50 mil pelo uso ilimitado do código-fonte Basic 8080”, lê-se em Código-fonte.
Após um acordo com a NCR, Gates e Allen foram procurados por um punhado de outras empresas de terminal inteligente. “Visitei uma delas, a Applied Digital Data Systems, em Long Island. Obviamente, como a MITS detinha os direitos no mundo todo sobre o Basic 8080, sempre que encontrávamos um cliente para o código-fonte, o contrato tinha de passar por eles. Se fechássemos um acordo, teríamos de dividir as receitas com eles. Nesse verão, fomos nos desligando gradativamente da MITS”, recorda o empresário.
Na primavera de 1977, quando apresentava seu Extended Basic a algumas pessoas, com o canto do olho, Gates viu um sujeito bem-apessoado mais ou menos da sua idade, de cabelo preto e comprido, barba bem aparada, vestindo terno, em um estande próximo, rodeado por seu próprio grupo, como descreve o autor. “Mesmo a certa distância dava para perceber que era dotado de certa aura. Pensei com meus botões: Quem é esse cara? Esse foi o dia em que conheci Steve Jobs”.
Embora menor do que muitas outras empresas, a Apple se sobressaía, observa Gates. “Já nessa época era evidente o característico talento para o design que faria da Apple — e de Jobs — algo tão icônico nas décadas seguintes”.
No evento, estavam lançando o Apple II, que, “com seu elegante gabinete bege, parecia antes um sofisticado produto eletrônico de consumo que um computador pessoal. Esse encontro inicial seria o início de um longo relacionamento entre Steve Jobs e eu, marcado por cooperação e rivalidade”.
E essa história estava apenas começando. Que venham os próximos volumes.
Negócios
Tem boi na pizza do churrasqueiro Netão

A paixão pela carne do empresário e churrasqueiro Domingos Neto, o Netão, fenômeno nas redes sociais e dono do grupo Bom Beef, agora vai ser dividida por um novo negócio: pizzaria.
“Quem me segue no Instagram sabe o quanto eu amo pizza. Tenho forno em casa e toda semana faço um evento para a família que é a pizza da Duda [filha de seis anos], que hoje também é para o Joaquim [de três anos]”, diz Netão, em entrevista ao NeoFeed. “A pizza está muito presente na minha vida.”
E, ao contrário das outras verticais do grupo, essa não terá a marca Netão por trás. Mas, claro, sua imagem. “Há um modelo de pizzaria que tem espaço para crescer e vou ser sócio de um empreendedor”, diz, sem revelar detalhes do empreendimento.
A ser inaugurada ainda em 2025, a primeira unidade da pizzaria, que ele pretende transformar em uma rede de franquias, será em São Paulo, a capital brasileira da pizza. “Antes de expandir, vamos testar sabores, o formato ideal, e sentir a avaliação dos clientes. Depois, vamos crescer”, afirma. “Na fase atual, estamos definindo o ponto.”
A pizzaria vem integrar um grupo que conta hoje com 54 açougues e 23 hamburguerias, espalhadas pelo Brasil. Em 2024, o Bom Beef registrou um crescimento de 20% e alcançou um faturamento de R$ 300 milhões.
Na conta estão, além dos royalties das franquias, as receitas das unidades próprias do açougue, da hamburgueria e de um restaurante de carnes, o Parilla Bom Beef, em Santos, no litoral paulista.
Também integram a fatia os recursos obtidos dos produtos licenciados Netão e das parcerias publicitárias. Hoje são 32 marcas, incluindo suas próprias, que tem o churrasqueiro como garoto-propaganda.
A pizzaria será o único negócio de Netão a ser lançado fora de Santos, sua cidade natal, onde começou a empreender, em 2014, quando comprou o pequeno açougue de seu tio, Marcelo.
Bem antes disso, Netão sempre teve um fascínio pelo ambiente do açougue, pela preparação dos cortes. Apesar do pai ter sido dono de um box no mercado de peixes em Santos, e Netão ter trabalhado por lá quando era adolescente, era no açougue do tio que enxergava seu futuro. Entre o peixe e o boi, a carne vermelha venceu de goleada.
Antes de ser o dono, foi contratado pelo tio para ser o entregador de bicicleta do açougue, que naquela época se chamava Costa Rica. “Eu tinha 16 anos e pedalava pela cidade de Santos inteira para levar os pedidos. Eu adorava aquilo”, lembra Netão, hoje com 39 anos. “Mas já vim pensando em ser dono do açougue.”
Ao mesmo tempo, queria aprender a ser açougueiro. “Meu tio, que também é meu padrinho [hoje tem 54 anos], foi me ensinando a cortar a carne da forma certa. E eu ia com ele nos frigoríficos.” Ele, que saiu de vez do ramo, hoje é dono de uma fábrica de gelos em Santos.
Na pandemia, estourou como criador de conteúdo, mostrando o preparo de vários cortes de carne, com promoções ao vivo e com lives com nomes consagrados da música, como Michel Teló. Em agosto de 2020, o churrasqueiro ficou duas horas ao vivo, preparando carnes, enquanto o cantor trazia suas músicas. O vídeo teve 1,3 milhão de visualizações.
Hoje Netão tem mais de 3 milhões de seguidores nas redes sociais. Em seu canal no YouTube, são 1,3 milhão e, no Instagram, 1,7 milhão. “Antes da pandemia, tinha 60 mil seguidores. E de repente explodiu”, conta.
Em 2021, ele passou a ser sócio de Sabrina Sato e seus irmãos, em uma configuração em que eles ficam responsáveis pela área publicitária da rede Bom Beef. “O irmão dela [Karin Sato] me procurou e queria ajudar na expansão da nossa rede. Hoje somos sócios também em outros negócios.”
Um churrasco mais barato
Com presença muito forte nos públicos A e B, Netão planeja para este ano abraçar pelo paladar também a classe C em seus açougues. Para isso, está preparando uma linha mais barata de cortes, sem que isso signifique perda dos padrões de sua linha premium.
“Hoje nosso negócio é baseado na carne de alta qualidade. Já lançamos uma picanha com uma linha boa, de ótima qualidade, mas 70% mais barato. E agora vamos ter uma carne popular, com nossa curadoria”, diz.
Na prática, Netão quer garantir o churrasquinho de fim de semana também do pobre. “Se hoje quero ter uma picanha a R$ 70 o quilo, vou procurar a que tenha a melhor qualidade nesse preço. A partir do mês que vem, essa linha estará presente na nossa rede.” Também em março vai começar o oferecer uma linha de suínos para churrasco.
Tudo isso sem deixar de vender o wagyu, a carne mais cara de seu açougue, que pode chegar a R$ 1,5 mil o quilo, se for importado do Japão.
Para manter o padrão em suas unidades, Netão tem uma rede de fornecedores de carnes de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, onde ele implementa seus padrões para adquirir as carnes. “Adoto meus protocolos de produção, de cria e recria, do período para o abate.”
Esse é o principal caminho traçado para a expansão da rede de açougues, que ele quer dobrar e chegar a 100 unidades em Brasil, basicamente no Sul e Sudeste. São levados em consideração conceitos de localização, renda per capita e número de habitantes de uma cidade.
Para ter uma unidade do açougue, o município precisa ter mais de 240 mil habitantes. No caso das lanchonetes, o foco é em cidades com pelo menos 300 mil habitantes (para lojas de 40 lugares), e mais de 350 mil moradores, para unidades com 80 lugares. Para lojas em shoppings (hoje são oito), o grupo Bom Beef também precisa aprovar a viabilidade econômica do centro de compras.
A meta de crescimento das hamburguerias também é ambiciosa e passa por 100% de aumento neste ano. Hoje com 1 milhão de lanches vendidos por mês, a rede de Netão deve chegar a 50 lanchonetes até dezembro. “A maior parte delas vai ser aberta por empreendedores que já são nossos franqueados”, explica.
A ideia passa também por expansão territorial. Além das lojas em cidades do estado de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, a Bom Beef Burgers vai chegar em Florianópolis (SC), Balneário Camboriú (SC), Belo Horizonte (MG) e Belém (PA). “A capital do Pará é uma cidade em que muita gente do Sudeste e do Nordeste vai visitar. A gente vai testar a marcar lá e, se for bem-sucedida, vai crescer no Norte e Nordeste.”
Ainda que não pareça, o empresário diz mais ‘não’ do que ‘sim’ na hora de definir sobre os novos locais para instalar sua rede de lanches. “A ampliação é planejada. A gente recusa de 10 a 20 pedidos de franquia por dia. E aceita dois por mês.”
Netão usa o feedback de seus seguidores como uma oportunidade para aprimorar os serviços. “As pessoas me mandam mensagens privadas e eu faço questão de acompanhar. O cliente me passa algo referente a um lanche da nossa rede, por exemplo, e eu repasso aos nossos supervisores”, diz. “É um contato direto com as pessoas, que eu não abro mão.”
Negócios
O monólogo “sem fala” de Mateus Solano

Mateus Solano sobe ao palco sozinho. Seu personagem, Augusto, é um figurante — um dos muitos rostos que preenchem a cena sem que jamais sejam notados. Eles cruzam ruas, aguardam elevadores, dançam em festas onde ninguém os chama pelo nome… ainda que façam o mundo dos protagonistas parecer real.
Mas, desta vez, é diferente. Em O Figurante, em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo, Solano coloca esses anônimos no centro da história. “Nunca fui figurante, mas sempre tive muito carinho pela figuração. Tanto que o personagem Augusto tem esse nome em homenagem a um grande figurante que nos deixou no ano passado, o Augusto Mucke,” diz o ator, em entrevista ao NeoFeed.
Em um palco minimalista, onde cortinas cinzas se confundem com o figurino do ator, Solano explora ao máximo os recursos que tem à disposição: o corpo e a multiplicidade de sua voz, preenchendo o espaço cênico com precisão.
A peça dá continuidade à pesquisa de linguagem que Solano e Miguel Thiré, diretor do espetáculo, desenvolvem há anos. Para Thiré, trata-se de uma encenação essencial, ancorada no corpo e na voz como os verdadeiros pilares do jogo cênico.
O Figurante discute o conceito de invisibilidade e protagonismo. Questiona quem realmente ocupa o centro das atenções nas narrativas que consumimos — e o que perdemos ao não olhar para os que permanecem nas bordas.
Todos os dias, Augusto repete a mesma rotina. Acorda, toma banho, escova os dentes, toma café. Não diz uma palavra. Na mímica, Solano encontra um campo vasto para explorar o movimento, os gestos e a expressão exata que arranca risos da plateia.
Depois, abre a agenda e vê qual personagem será o seu naquele dia. Para Augusto, qualquer figura anônima pode ser o papel da sua vida. Antes de seguir para o set, ele ensaia. Imagina o passado do personagem, seus movimentos, o tom de sua voz. Dá a ele forma, gestos, e vida, como se fosse o protagonista de uma história imensa.
Mas quando chega a hora de brilhar, de se revelar no palco, ele é silenciado. O diretor, o fiscal da figuração, o contrarregra — todos o apagam. Augusto não fala, é colocado no seu lugar, e é instruído a fazer apenas o que foi pedido: caminhar, dançar, ficar parado em frente ao portão; sem espaço para a própria expressão.
No silêncio de Augusto, Solano empresta sua voz, sempre por meio de gravações, para personagens que normalmente circulam pelo set: diretores, produtores, câmeras e, claro, atores. Elas têm voz, sem jamais aparecer.
“Todas essas necessidades e recursos surgiram no processo de construção da peça. Ao focarmos naquele que nunca é visto, pareceu interessante ouvir, mas não ver aqueles que, num set, são protagonistas,” explica o ator.
“Garimpo do inconsciente”
Pela primeira vez em 22 anos de carreira, Solano está sozinho no palco. “Tem sido fundamental para meu amadurecimento como ator e como pessoa. Não tenho para onde fugir — de mim mesmo, dos meus medos, das minhas dificuldades”, diz ele. “É um trabalho que me desafia e me transforma.”
No projeto, o ator vai além da interpretação: é um dos autores do texto. A dramaturgia nasceu do método Escrita na Cena, desenvolvido por Isabel Teixeira, que estimulou Solano a explorar sua própria criatividade por meio de exercícios de improvisação. Recentemente, os dois atuaram juntos na novela Elas por Elas, da Globo, onde viveram o casal Jonas e Helena.
Este processo criativo, registrado e reelaborado, resultou no que Solano descreve como um “garimpo do inconsciente”. As cenas improvisadas por ele foram transcritas e trabalhadas por Isabel, mantendo a autenticidade das reflexões do ator sobre o personagem.
“O argumento de O Figurante já existia na minha cabeça há mais de dez anos, mas só tomou forma nesse processo tão rico. E arrisco dizer: ainda está em construção. A peça continua ‘falando comigo’, porque foi garimpada do meu inconsciente. Ela ainda tem muito a me ensinar”, reflete Solano.
Foi em um dos momentos de maior sucesso de sua carreira que Solano se sentiu figurante de sua própria vida. Em 2013, ele vivia o vilão Félix na novela Amor à Vida, de Walcyr Carrasco, no horário nobre da TV Globo.
O personagem conquistou o público, que clamou por sua redenção. Ao lado de Thiago Fragoso, seu par romântico na trama, protagonizou o primeiro beijo gay de um casal masculino na TV aberta brasileira. Esse marco na história da televisão trouxe a ele uma visibilidade que, à primeira vista, parecia ser um triunfo.
Figurante da própria vida
O sucesso de Félix foi tanto que, para Solano, as pessoas o cumprimentavam ou pediam fotos porque gostavam do personagem.
“Quando fiquei famoso, passei a lidar com máscaras que os outros colocavam sobre mim, revestidas de carinho, mas também de expectativas”, conta o ator. “Me tornei um personagem de mim mesmo, mais identificado com quem eu interpretava do que com quem sou de verdade. Foi nesse sentido que me senti figurante da minha própria vida.”
A reflexão de Solano aqui não diz respeito apenas à fama, mas à experiência humana de sermos definidos pelos outros, pela imagem que eles projetam sobre nós.
Para o ator, a experiência pessoal mostrou que essa sensação de ser figurante da própria história vai além da profissão ou da posição de aparente protagonismo.
“Hoje, mesmo quando todos se consideram protagonistas de suas redes sociais, estamos nos enganando. O que realmente buscamos é a aprovação do outro, seja por um like, seja por um compartilhamento,” resume, apontando para uma das grandes questões do nosso tempo: a busca incessante por reconhecimento.
Em 70 minutos, Solano diverte a plateia, convida-a a ser protagonista do espetáculo e a faz refletir. “O Figurante nos coloca uma pergunta muito pertinente para o tempo em que vivemos”, afirma Solano. “Você é protagonista ou figurante de sua própria história?”
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